Do Novo Eleitoral
Em primeiro lugar quero deixar muito claro desde o início que não vou falar em nenhum caso concreto, não somente pela limitação que possuo por ser Juiz de Direito, mas, também, pelo peculiar fato de que essa realidade acontece, infelizmente, como regra geral, já que os colegas, em sua grande maioria, acham que podem decidir segundo os seus valores pessoais, o que termina por produzir um sem número de julgados em que não se consegue extrair o mínimo de segurança jurídica.
Pior de tudo é que, algumas vezes, isso se dá por interesses escusos e também pessoais.
Mesmo partindo dessa premissa, não posso me furtar a falar, por óbvio, ainda que perfunctoriamente, pois não tenho elementos concretos para analisar o processo de soltura de José Dirceu pela segunda turma do STF. Contudo, é imperioso que pelo menos publicize, com a coragem de cidadão que luta contra a corrupção sem qualquer possibilidade de tergiversar nessa área, a possível incoerência, trazida pelo Procurador da República Deltan Dallagnol e com isso demonstrar, por mais um caso, que tal condição, infelizmente, é regra geral em nossa Justiça.
Que fique bem claro: luto pessoalmente para que nossas decisões não padeçam desse pecado!
Ao falar de prisões provisórias em um modo abstrato, ouso dizer que conheço um pouco da matéria, já tendo disponibilizado a todos os leitores e demais interessados um curso de 15 horas gratuito, baseado em livro já em segunda edição que fiz com o colega e amigo Pedro Caldas.
No contexto, é preciso que as peculiaridades funcionem como uma espécie de distinguishing que fuja a ratio decidendi que deve formar o precedente. Ou seja, temos que ter uma definição jurídica, por exemplo, do que se constitui, pelo menos como regra geral, "excesso em uma prisão preventiva" e aí aplicar o preceito com segurança jurídica a todos os casos.
Será que o STF agiu assim nesse caso?
É óbvio que não vou responder, deixando aos leitores a indagação e as fontes para que cada um forme a sua convicção. Contudo, antes de abordar tecnicamente a partir do que venho vendo nesses quase vinte anos de magistratura e estudando ao longo de nossa experiência como processualista, tenho também a obrigação de postar parte de um texto de uma colega Juíza do TJMG, Ludmila Lins, trazido em vários grupos de whatsap e redes sociais, em que a mesma faz a distinção entre duas categorias de Juízes:
“Sempre que o STF profere alguma decisão bizarra, o povo logo se apressa para sentenciar: “a Justiça no Brasil é uma piada”. Nem se passa pela cabeça da galera que os outros juízes – sim, os OUTROS – se contorcem de vergonha com certas decisões da Suprema Corte, e não se sentem nem um pouco representados por ela."
O que muitos juízes sentem é que existem duas Justiças no Brasil. E essas Justiças não se misturam uma com a outra. Uma é a dos juízes por indicação política. A outra é a dos juízes concursados. A Justiça do STF e a Justiça de primeiro grau revelam a existência de duas categorias de juízes que não se misturam. São como água e azeite. São dois mundos completamente isolados um do outro. Um não tem contato nenhum com o outro e um não se assemelha em nada com o outro. Um, muitas vezes, parece atuar contra o outro. Faz declarações contra o outro. E o outro, por muitas vezes, morre de vergonha do um.
Geralmente, o outro prefere que os “juízes” do STF sejam mesmo chamados de Ministros – para não confundir com os demais, os verdadeiros juízes... Por que será que os réus lutam tanto para serem julgados pelo STF (o famoso “foro privilegiado") – fugindo dos juízes de primeiro grau como o diabo foge da cruz? Por que será que eles preferem ser julgados pelos “juízes” indicados politicamente, e não pelos juízes concursados? É por essas e outras que, sem constrangimento algum, rogo-lhes: não me coloquem no mesmo balaio do STF. Faço parte da outra Justiça: a de VERDADE.”
Feito essas considerações prévias que reputo imperiosas para que se comprove, infelizmente, a afirmação feita no título desse pequeno texto, passo a tratar de um modo genérico como se dá o “modus operandi” de nossos julgados, realidade que precisa ser mudada urgentemente.
A fundamentação das sentenças proferidas pelos Magistrados é um dever constitucional, preconizado no art. 93, inciso IX da CF/88 e essa não pode ser qualquer fundamentação. Isso garante às partes que as decisões sejam embasadas nos fatos narrados e provas levadas ao juízo, evitando discussões desconectadas ou imprecisas e, principalmente, sem que se leve em consideração as definições jurídicas já feitas pelos Tribunais competentes, como preconiza nossa Carta Magna.
Tão importante é esse dever que o novo Código de Processo Civil (CPC), em seu artigo 10, dispõe que o juiz não pode decidir com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício. É o chamado direito de influência e que veda que se tenha decisões surpresas.
Mais ainda: foi modificada a regra constante no artigo 371, afirmando que o Magistrado deverá apreciar as provas e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento, que não é mais livre. Aliás, como sempre defendeu Lênio Streck, um dos maiores críticos do deciosionismo pessoal, o convencimento nunca foi livre em matéria de decisão judicial. Aqui indico um dos vários textos em que o jurista citado critica essa ação equivocada de alguns juízes: "Vi vazamentos da PF e nada fiz, porque entendi qual foi o propósito".
No CPC/1973, pelo artigo 131, o juiz poderia apreciar livremente a prova, o que de certa forma abria espaço para um certo subjetivismo e discricionariedade, fato que felizmente já não podemos cultivar hodiernamente.
A importância de se manter um entendimento e se aplicar decisões uniformes aos casos semelhantes é essencial para a segurança jurídica e por conseguinte para se resguardar o respeito ao Judiciário. Esse Poder, que tanto se aproxima das pessoas e que tanto é provocado por estas - pode-se dizer até mais que os outros -, necessita manter acesso e confiança da população.
Mas muitas vezes não é isso que acontece. Em diversos casos somos surpreendidos por sentenças e acórdãos que nos causam perplexidade pelo teor diferenciado a partes em situações semelhantes, tanto fática como jurídica. Pior é quando fica evidente o tratamento desigual que favorece determinadas pessoas, pessoas essas quem, incrivelmente, são aquelas de maior influência política e econômica.
Esta semana, como já registrado e ouso mais uma vez enunciar, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu que passa a ser de competência do juiz Sergio Moro, fixar medidas cautelares ao ex-ministro José Dirceu. No julgamento do habeas-corpus, Dias Toffoli argumentou que não seria possível manter a prisão preventiva de Dirceu apenas com base em uma condenação de 1ª instância, sendo o entendimento seguido por Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, liberando, por conseguinte, o ex-ministro.
A decisão causou revolta em muitas pessoas e levou críticas do Procurador da República Coordenador da Lava Jato, Deltan Dallagnol. Em texto, intitulado "A incoerente soltura de José Dirceu pelo Supremo", ele afirmou:
O que mais chama a atenção, hoje, é que a mesma maioria da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal que hoje soltou José Dirceu – Ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski – votaram para manter presas pessoas em situação de menor gravidade, nos últimos seis meses. [...]
Diz-se que o tráfico de drogas gera mortes indiretas. Ora, a corrupção também. A grande corrupção e o tráfico matam igualmente. Enquanto o tráfico se associa à violência barulhenta, a corrupção mata pela falta de remédios, por buracos em estradas e pela pobreza. Enquanto o tráfico ocupa territórios, a corrupção ocupa o poder e captura o Estado, disfarçando-se de uma capa de falsa legitimidade para lesar aqueles de quem deveria cuidar. A mudança do cenário, dos morros para gabinetes requintados, não muda a realidade sangrenta da corrupção. Gostaria de poder entender o tratamento diferenciado que recebeu José Dirceu, quando comparado aos casos acima.
O Supremo Tribunal Federal é a mais alta Corte do país. É nela que os cidadãos depositam sua esperança, assim como os procuradores da Lava Jato. Confiamos na Justiça e, naturalmente, que julgará com coerência, tratando da mesma forma casos semelhantes. Hoje, contudo, essas esperanças foram frustradas. Mais ainda, fica um receio. Na Lava Jato, os políticos Pedro Correa, André Vargas e Luiz Argolo estão presos desde abril de 2015, assim como João Vaccari Neto. Marcelo Odebrecht desde junho de 2015. Os ex-Diretores Renato Duque e Jorge Zelada desde março e julho de 2015. Todos há mais tempo do que José Dirceu. Isso porque sua liberdade representa um risco real à sociedade. A prisão é um remédio amargo, mas necessário, para proteger a sociedade contra o risco de recidiva, ou mesmo avanço, da perigosa doença exposta pela Lava Jato. [grifo nosso]
O promotor Affonso Ghizzo Neto também expressou sua indignação em texto, declarando que:
As relativizações sobre a gravidade e as consequências do fenômeno da corrupção no Brasil parecem ter extrapolado o critério mínimo de razoabilidade e ponderação. Cada um enxerga o que deseja, na hora que quer, com a conveniência que pretende, na medida que lhe convém. Aliás, a tão criticada operação "Lava Jato" resume bem esta constatação aqui em Santa Catarina. Usada por alguns para imputar o envolvimento criminoso de alguns políticos locais, não tem o mesmo tratamento em nível nacional e vice-versa. Falta de critério, coerência e responsabilidade. Estas pessoas perdem a credibilidade e o que falam (para mim) passa a ter pouco significado e valor. É preciso perceber que, como diria Cazuza, "nossos heróis morreram de overdose" e nossos inimigos - independente de partidos políticos ou ideologias de "esquerda" e de "direita" - continuam no poder! – COERÊNCIA É TUDO!
Como já afirmou o professor e jurista brasileiro Lênio Luiz Streck, “a fundamentação da decisão é condição da democracia”. Concluo então dizendo que a coerência nos julgados é primordial à respeitabilidade e confiabilidade do Judiciário e, por corolário, à efetiva justiça ao povo, que deseja, por óbvio, a isonomia de resultado nos julgados, não aceitando que o rigor da lei se aplique a uns e não a outros, inclusive sem qualquer distinção clara que justifique o tratamento diferenciado.
Precisamos que a mais alta Corte do país faça valer a nossa Constituição e que sirva de exemplo para todas as instâncias deste Poder, sob pena de que mesmo sendo duas categorias de juízo distintas, como muito bem trazida pela colega mineira, a população não faz ainda a devida diferenciação, logo todos nós sofremos quando a almejada segurança jurídica cede a vontades pessoais (Em que mundo estamos vivendo: o que tá acontecendo no país?).
Por fim, só tenho a dizer que como Juiz não desejo nunca impor, em decisões que não são minhas, os meus valores. Tenho sim, como obrigação legal, como agente estatal que presenta o Estado Juiz, externar os valores constitucionais e legais, e quando todos agirem assim, com certeza, teremos a almejada e olvidada segurança jurídica.
Que todas as autoridades judiciárias não se sintam constrangidas com esse texto pelo lado pessoal, mas que se sintam constrangidas publicamente pelo que não estão fazendo e que precisam urgentemente passar a fazerem, sob pena de vivermos um Estado judicial ao invés do legal e democrático de Direito!