Por Maitê Ferreira*
Mourão considera que os manifestantes em defesa da democracia não passam de “baderneiros”, “delinquentes” e de “caso de polícia”. As manifestações que defendem intervenção militar, fechamento do Congresso e do STF, por sua vez, seriam a legítima expressão da democracia
(Foto: Folha de São Paulo) |
O general e vice-presidente da república Hamilton Mourão anda falando bem mais do que de costume. A imprensa, acostumada que estava a repercutir suas raras e incisivas manifestações públicas, que basicamente ocorriam de ano em ano tais como eclipses, impressionam-se com as novas intervenções, tão contínuas quanto enigmáticas, do vice-líder da república.
Mourão parece estar refinando seu discurso. Sua retórica abertamente golpista, padrão de suas manifestações de 2017 e 2018, vem sendo substituída com a de um sacerdote do Estado, exorcista dos demônios de um ideal peculiar de democracia cultivado pelo mesmo. Seu último artigo, intitulado “Limites e Responsabilidades”, foi objeto de análises políticas de todos os espectros ideológicos, que concordaram enfim que seu artigo sinalizava para agitar a ameaça do golpismo e da intervenção militar no horizonte nacional.
Sua nova publicação no jornal “O Estado de São Paulo” (aparentemente, seu preferido) do último 03/06/2020, desta vez intitulado “Opinião e Princípios”, vem novamente para inquietar os espíritos genuinamente preocupados com a manutenção do regime democrático no país. Passemos a analisar e dissecar seu conteúdo a seguir.
Antifascismo no Brasil: um modismo importado made in USA?
Na visão do vice-presidente, racismo, autoritarismo e ditaduras nunca foram problemas no Brasil
Mourão considera que as numerosas manifestações antifascistas e antirracistas que ocorreram no Brasil nas últimas semanas não passam de uma moda importada dos Estados Unidos. Temos muitos problemas, certamente, mas resistir contra o golpismo encarnado nas instituições militares e contra o racismo estrutural da sociedade brasileira, a seu ver, não fazem parte deles:
"Cabe ainda perguntar qual o sentido de trazer para o nosso país problemas e conflitos de outros povos e culturas. A formação da nossa sociedade, embora eivada de problemas contra os quais lutamos até hoje, marcadamente a desigualdade social e regional, não nos legou o ódio racial nem o gosto pela autocracia. Todo grande país tem seus problemas, proporcionais a seu tamanho, população, diversidade e complexidade. O Brasil também os tem, não precisa importá-los".
Ora, aparentemente Mourão está mais embebido na narrativa da democracia racial brasileira do que atento às estatísticas da imensa quantidade de população negra encarcerada nos presídios de todo o país, ou dos negros que todos os dias morrem, por diversas vezes inocentes, vítimas de “supostas balas perdidas”, nas favelas do Rio de Janeiro e de todo o país.
Quanto ao “gosto pela autocracia”, Mourão parece ignorar que as intervenções militares são uma regra, e não uma exceção na história política brasileira. Parece não lembrar da proclamação da república, em 1889, um golpe de estado militar e republicano. Ou da revolução de 30 sustentada pelo Exército; da ascensão do Estado Novo conspirada pela alta oficialidade do Exército em 1937; e da deposição do mesmo Vargas em 1945: que ironicamente os militares também alçaram ao poder em 1930, e à autocracia, em 1937.
Esqueceu-se da tentativa de golpe frustrada em 1955, que frustrada foi apenas pelo contra-golpe preventivo perpetrado pelo também militar Marechal Lott. Talvez tenha se esquecido da mudança forçada de regime político de presidencialismo para parlamentarismo em 1961, orquestrada por Odylio Denys com apoio da ampla maioria dos generais do Exército, para evitar que João Goulart assumisse como legítimo presidente. Mas certamente não se esqueceu do golpe militar de 1964, visto que o regime que daí desaguou, Mourão nunca considerou uma verdadeira ditadura.
Sob um signo progressista-reformista ou conservador-autoritário, não há como negar que a intervenção militar na história do Brasil é uma regra, e não uma exceção. Todavia, para Mourão, o Exército nunca interviu em um sentido ruim, mas exerceu o “poder moderador” na república, controlando os excessos que os civis traziam para a política: para ele certamente não faz sentido falar de ditadura, mas de uma certa forma de exercício de um controle paternalista, verdadeira vocação das Forças Armadas no Brasil. Faz mais sentido falar sobre ditadura no que concerne aos mais de seis mil militares que foram expurgados das Forças Armadas pós-1964 (por serem nacionalistas e legalistas), todas as mulheres estupradas, e militantes torturados e mortos por este mesmo regime.
O regime militar: os “anos dourados”
Preocupação com nova ditadura militar no país não passaria de suposta nostalgia cultivada pela imprensa ‘esquerdista’. “Anos dourados” que não voltam mais…
Para Mourão, a preocupação da imprensa e da sociedade civil com a instauração de uma nova ditadura militar no país não passa de uma nostalgia cultivada por jornalistas e militantes que sentem saudades dos seus “anos dourados” (que o digam aqueles que tiveram parentes mortos pelo regime, já que os mortos não podem falar por si mesmos!), em que poderiam protestar em suas barricadas e posar como agitadores contra um regime que, a seu ver, nunca foi uma verdadeira ditadura:
"Finalmente, é razoável comparar o regime político que se encerrou há mais de 35 anos com o momento que vivemos no País? Lendo as colunas de opinião, os comentários e até despachos de egrégias autoridades, tem-se a impressão de que sessentões e setentões nas redações e em gabinetes da República resolveram voltar aos seus anos dourados de agitação estudantil, marcados por passeatas de que eventualmente participaram e pelas barricadas em que sonharam estar".
Aos manifestantes antifascistas, para Mourão, resta a plena incompreensão e qualificações indecorosas. Não existe qualquer ameaça à democracia brasileira, e se discordam, calem-se,”baderneiros’’! Afinal:
"A apresentação das últimas manifestações contrárias ao governo como democráticas constitui um abuso, por ferirem, literalmente, pessoas e o patrimônio público e privado, todos protegidos pela democracia. Imagens mostram o que delinquentes fizeram em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. Registros da internet deixam claro quão umbilicalmente ligados estão ao extremismo internacional. É um abuso esquecer quem são eles, bem como apresentá-los como contraparte dos apoiadores do governo na tentativa de transformá-los em manifestantes legítimos. Baderneiros são caso de polícia, não de política. […] Desde quando, vigendo normalmente (a democracia), ela precisa ser defendida por faces mascaradas, roupas negras, palavras de ordem, barras de ferro e armas brancas? […] Aonde querem chegar? A incendiar as ruas do País, como em 2013?"
Delinquentes, baderneiros, extremistas. São os adjetivos que Mourão, que vem ironicamente defender os ideais da “tolerância” e do “diálogo”, vem taxar os manifestantes opositores não apenas de Bolsonaro e seu governo, mas da ascensão da retórica golpista e intervencionista patrocinada por apoiadores do governo e militares em todo país.
A defesa da democracia é baderna, e a defesa da ditadura é democrática
Os curiosos sentidos da democracia para Mourão
A novidade do artigo de Mourão, diferente de todos os outros, é que ele teceu considerações, pela primeira vez, acerca dos “supostos excessos” (frise-se, meramente retóricos) de Bolsonaro e de seus apoiadores. As manifestações diárias em defesa da ditadura militar em Brasília, pelo fechamento do Congresso e do STF, apoiadas pelo próprio presidente da República, a seu ver não são dignas de qualquer preocupação:
"Não é admissível que, a título de se contrapor a exageros retóricos impensadamente lançados contra as instituições do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, assistamos a ações criminosas serem apoiadas por lideranças políticas e incensadas pela imprensa. A prosseguir a insensatez, poderá haver quem pense estar ocorrendo uma extrapolação das declarações do presidente da República ou de seus apoiadores para justificar ataques à institucionalidade do País".
As manifestações golpistas reiteradas, por parte do presidente e de sua base de apoio, consubstanciadas em ameaças de generais governistas como aquelas lançadas mais de uma vez pelo General Augusto Heleno, não passam de “exageros retóricos”. As ameaçadas lançadas contra o Congresso e do STF foram lançadas “impensadamente”. Talvez, se pensassem melhor, restassem ocultas. Afinal, divulgar a estratégia que Mourão cultiva desde 2017 pode atrapalhar seus planos. Mesmo essencialmente antidemocráticas, tais manifestações são, ao ver do Vice-Presidente, “legítimas, enquanto expressões de pensamento e dissenso, essenciais para o debate que a ela dá vida.” Ilegítimas são as manifestações antifascistas e em defesa da democracia, frequentadas por baderneiros e delinquentes, extremistas internacionais, movidas por um modismo importado made in USA.
Seu artigo ainda reserva um espaço para criticar até o ministro decano do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello. Utilizando de sua legítima liberdade de expressão, tão invocada pelos bolsonaristas, declarou que o clima político no país se assemelhava aquele da ascensão do nazismo na Alemanha. É possível encontrar várias semelhanças, e também diferenças, em ambas as conjunturas, como seriam inevitáveis em qualquer analogia histórica. Mourão já tem, todavia, sua opinião pronta: “Tal tipo de associação, praticada até por um ministro do STF no exercício do cargo, além de irresponsável, é intelectualmente desonesta.”
Se para Mourão a defesa aberta de uma ditadura militar é legítima e democrática, e os atos em defesa da democracia são fruto de delinquentes e baderneiros movidos por suposto modismo internacional, resta nos questionar o que de fato significa a democracia para o vice-presidente, para além da defesa incondicional do governo que então faz parte.
Mourão termina seu artigo com uma consideração enigmática: “Quando a opinião se impõe aos princípios, todos perdem a razão. Em todos os sentidos.”
Estaria Mourão prestes, também, a perder a razão em todos os sentidos?
*Maitê Ferreira Nobre é jornalista que aborda o tema da saúde pública, advogada, mestranda em Direito pela UFERSA, especialista em direito constitucional pela mesma universidade.
**As opiniões e conclusões contidas neste texto não representam necessariamente o posicionamento do Blog Carol Ribeiro.
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