Por Maitê Ferreira*
Relaxamento sistemático das políticas de quarentena em meio à aceleração da pandemia levará o Brasil a se tornar o exemplo mundial na aplicação do princípio da “imunização coletiva”. Deixando a curva infecciosa acelerar livremente, o fim da pandemia só pode chegar após atingirmos a cifra de 200 mil mortes, vitimando uma em cada mil pessoas no país.
Abertura de novas covas coletivas em Manaus/AM (Foto: autor não identificado) |
Todos aqueles que tentaram prever os possíveis “picos” da pandemia do Coronavírus no Brasil falharam miseravelmente (leia aqui: [1] [2] [3] [4] [5] [6] [7] [8] [9] [10). Com mais de 35 mil mortes e uma curva inegavelmente ascendente, os números desmentem as profecias. Movidos por um otimismo existencial e realizando comparações descabidas da situação brasileira sui generis com países que, levando a pandemia a sério, adotaram medidas de isolamento social rídigo, erraram reiteradas vezes em suas previsões do ‘pico’, que coincidiria com o momento de início de estagnação e posteriormente descenso da curva ascendente de infecções ativas e óbitos. Por um outro lado, também não faltaram previsões catastróficas, que se desviando muito da curva real, previram um número de mortes muito maior antes do tempo. Este catastrofismo apenas desacredita a ciência epiemiológica, diante do obscurantismo que avança no Brasil.
Este ensaio ambiciona esboçar uma resposta para uma questão que tanto atormenta o povo brasileiro de norte a sul: quando e como a pandemia do Coronavírus terminará no país?
Para isto, é necessário primeiramente considerar que uma pandemia pode estagnar e desacelerar sua curva apenas de duas maneiras:
1) relativamente, através das políticas de lockdown, que são capazes de desacelerar os casos/óbitos e evitar o colapso dos sistemas de saúde, mas que por motivos óbvios não podem ser mantidas indefinidamente. A retomada gradual das atividades econômicas e do turismo enseja, mais cedo ou mais tarde, a retomada ascendente da curva e “segundas ondas” epidêmicas, como já ocorre na China ou se torna previsível em diversos países que já assumiam ter enfrentado seus ‘picos’; (leia aqui: [12] [13] [14] [15] [16] [17] [18)
2) definitivamente, através do princípio da “imunização coletiva”, “imunidade de rebanho” ou “imunidade de grupo” [19]. De acordo com este princípio, considerando que se trata de uma doença que não possui nem vacina nem cura, seria necessário que pelo menos metade da população adquirisse anticorpos para que a pandemia passe a desacelerar definitivamente. Só adquire anticorpos quem luta contra a doença e é curado, logo, para que haja imunização coletiva, é necessário que pelo menos metade da população contraia a doença. Este princípio foi definido e aplicado inicialmente pela Suécia [20], com argumentos científicos tão convincentes quanto inconsequentes [21]. O Reino Unido também flertou com a estratégia [22], porém ambos os países voltaram atrás frente à desaleceração descontrolada de casos e óbitos diante da postura passiva dos governos frente à pandemia [23] [24] [25].
A lógica da imunização coletiva é certamente incontestável, todavia, sendo aplicada politicamente, é sádica e incosequente, pois aposta na catástrofe sanitária para alcançar uma solução de médio prazo, como aponta o Dr. Inaí Tupinambás da UFMG [26] e o médico sanitarista Alberto Araújo [27]. Se até em países desenvolvidos levou ao colapso do sistema de saúde, quiçá em países que não possuem sistemas de saúde não tão desenvolvidos assim. As políticas de lockdown são táticas paliativas a longo prazo, porém inegavelmente funcionais, e levaram a países como a Nova Zelândia a temporariamente erradicar as transmissões comunitárias com cerca de apenas 1500 casos [28].
Este consenso mundial em torno da eficácia da quarentena apresenta um competidor formidável: o Brasil. Sem utilizar argumentos tão requintados como os suecos, tomado pelo obscurantismo, pela crença em falsas curas e pelo irracionalismo da polarização política, o Brasil caminha para se tornar uma referência mundial no que tange a como um país que não adotou qualquer medida de quarentena a nível nacional reage diante de uma pandemia. Ou seja, caminhamos para nos tornamos o exemplo de sermos o único país que aplicará até as últimas consequências o princípio da imunização coletiva como (anti)solução para a crise nacional do Coronavírus. Se para realizarmos esta contra-experimento em escala nacional seja necessário que nos tornemos recordistas mundiais de mortes, o presidente Jair Bolsonaro já se pronunciou sobre isso: “A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”. Até a teimosia anticientífica pode comprovar a ciência, por meios um tanto quanto mórbidos.
Alguém poderia lembrar que as políticas de lockdown chegaram a ser adotadas em alguns estados do Brasil. Todavia, a tendência atual, mesmo nesses estados, é de seu relaxamento e retomada gradual das atividades econômicas mesmo sem termos atingido o pico da pandemia [29]. “O Brasil está flexibilizando a quarentena enquanto os números ainda estão aumentando e sem saber se a pandemia já chegou ao pico. É uma insanidade” — avalia o epidemiologista Alberto Moura da Silva, da UFMA [30]
Feitas essas considerações preliminares, retornemos ao ponto inicial do ensaio. Será possível prever quando chegará o fim da pandemia no país? Acreditamos que já é possível prever estatisticamente quando esse momento chegará. Todavia, a efetividade de tal previsão que aqui apresentaremos depende substancialmente de que algumas premissas de natureza política, que já estão se mostrando, sejam tomadas enquanto constantes da análise:
1) O Brasil não adotará uma política de quarentena nacional, como já sinaliza cansativamente o governo federal;
2) os Estados que estão implementando a retomada gradual da economia serão impedidos de implantar novamente o lockdown pelas inúmeras pressões comerciais, industriais e sociais;
3) não será descoberta uma vacina ou uma cura eficaz para o Coronavírus até o final de 2020;
4) que uma pessoa curada do Covid-19 passará a apresentar anticorpos eficazes que engrossarão as fileiras da imunização coletiva, fazendo a mesma não mais voltar a contrair a infecção e nem mais transmitir para outras pessoas;
5) que as pesquisas realizadas pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS), formado por cientistas da PUC-RJ, Fiocruz e Instituto D’or, e pela iniciativa Covid-19 Brasil, que reúne pesquisadores da USP e de diversas universidades brasileiras, sejam tomadas como verdadeiras, uma vez que admitem que a subnotificação de casos pode ser 12, 15 ou 20 vezes maior do que aqueles apresentados mediante os dados do Ministério da Saúde [31] [32] [33]. Isto se dá por uma consideração óbvia, não é realizada testagem em massa no Brasil, o número de casos confirmados em sua imensa maioria reflete substancialmente o número de internações hospitalares devido ao Covid-19, e não todos os casos. Sem testagem em massa, os casos assintomáticos e leves não chegam a ser contabilizados.
Observação relevante: No que tange em avaliar a partir de quando poderemos nutrir esperanças pelo tão esperado pico da pandemia, e consequentemente, pela estagnação e desaceleração da curva, este dado é mais positivo do que negativo. Quanto maior a subnotificação, mais casos realmente tivemos, e mais próximos da imunização coletiva estaremos.
Neste sentidos, para formular nossa previsão sobre o fim da pandemia no Brasil, uniremos a boa ciência com um nível de otimismo aceitável para evitar o catastrofismo analítico. Passemos à previsão.
É um consenso científico que, sem medidas de lockdown, a imunização coletiva sinaliza para o fim definitivo da aceleração da pandemia, e só pode ocorrer quando ao menos metade da população for infectada. É o que já expressou abertamente o ex-ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta [34] [35]. Excluindo as lamentáveis centenas de milhares de mortes, as massas populacionais que restam curadas do Coronavírus adquirem anticorpos e não passam mais a contrair a infecção e nem infectar outras pessoas. A pandemia, inevitavelmente, passa a desacelerar terminantemente seu ritmo de contágios, e a curva passa a definitivamente declinar até chegar à relativa estagnação. O coronavírus passa a se tornar mais uma espécie de ‘gripe sazonal’ e deixa de ser uma preocupação global de saúde pública: a pandemia chega ao fim. Diversos infectologistas e epidemiologistas prevêem esse cenário como fim definitivo e lógico de qualquer pandemia. [36] [37] [38]
O Brasil possui cerca de 210 milhões de pessoas em 2020 [39]. Considerando que o Brasil trilha este caminho tanto espinhoso quanto trágico, por conseguinte chegamos à conclusão parcial que pelo menos 105 milhões de brasileiros teriam de ser infectados pelo coronavírus (tomando o termo infectados em sentido amplo: soma-se infectados ativos, curados e óbitos em uma mesma cifra). Só a partir daí ocorreria o fim definitivo da pandemia no país.
A partir daqui, tomemos para o presente ensaio as conclusões das diversas pesquisas brasileiras, assumindo que o número de casos pode vir a ser até 20 (vinte) vezes maior do que aqueles apresentados pelos dados oficiais. É possível realizar a mesma projeção com a cifra de 12x ou 15x, mas tomamos aqui a cifra de 20x pois esta leva a resultados menos catastróficos. Conforme falamos anteriormente, trata-se de um nível otimismo aceitável, que não deixa de levar em conta a boa ciência.
Utilizando estes dados como parâmetros, chegamos a uma segunda conclusão parcial. Somente quando o número de casos confirmados chegasse a pelo menos 5 (cinco) milhões — de acordo com os dados já contestados do Ministério da Saúde — incluídos os óbitos e os curados, poderíamos vislumbrar o fim da pandemia no país.
Quando atingiremos esta assombra cifra de 5 (que na verdade equivaleriam a 100) milhões de casos? Uma ferramenta analítica recentemente desenvolvida no país pode ajudar a responder essa questão.
O Instituto de Informática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul produziu um mecanismo analítico intitulado Covid Analysis Tools, que permite analisar as estatísticas de progressão de casos confirmados/mortes pelo Covid-19 em quase todos os países do mundo, produzindo gráficos comparativos personalizados de acordo com os dados estatísticos introduzidos em seu banco de dados a partir dos dados oficiais de governos de todo o mundo, inclusive a nível regional e local. É uma ferramenta valiosa que se baseia na estatística como forma de analisar e prever as curvas infecciosas de diversos países do mundo. A ferramenta pode ser acessada aqui.
Tomando como constantes as cinco premissas assumidas acima, a previsão estatística parece um método confiável para analisar a progressão de casos no Brasil. Sem mais medidas políticas de lockdown, a pandemia do Coronavírus irá seguir sua curva ascendente progressivamente, de forma livre e desenfreada, até chegar em seu pico, da maneira mais natural (e catastrófica) possível.
Passemos aos gráficos.
(Fonte: UFRS) |
De acordo com o referido gráfico, o Brasil chegaria a mais de 5 milhões de casos confirmados de acordo com os dados oficiais na primeira semana de setembro. Tomando em consideração a estimativa (neste contexto, otimista) de que tal cifra pode ser 20 (vinte) vezes maior quando se tratam de casos reais, somente após setembro poderíamos vislumbrar a desaceleração pandêmica no país. Algumas previsões de cientistas e pesquisadores corroboram com tal conclusão, incluindo um relatório assinado pelo ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta [40] [41] [42]
Esta cifra de casos equivaleria a quantas mortes? A ferramenta analítica também sugere uma resposta para tal questão.
(Fonte: UFRS) |
No início de agosto, o Brasil já terá superado os Estados Unidos da América e se tornará o incontestável epicentro mundial da pandemia. Nas primeiras semanas de setembro, estima-se que o Brasil já tenha superado a cifra de 200 mil mortes. Somente após tamanha catástrofe, que vitimaria cerca de 1 em cada 1000 pessoas no país, poderíamos vislumbrar o fim definitivo da pandemia no horizonte nacional.
Por fim, podemos concluir que somente a partir de setembro, com mais de 5 (cinco) milhões de casos confirmados e 200 mil mortes, é possível vislumbrar no horizonte do fim definitivo da pandemia no Brasil.
Até lá, imaginamos que os mesmo os controversos dados oficiais deixarão de ser divulgados por questões políticas, como já se sinaliza no Brasil [43]. E a conjuntura nacional, marcada pelo ascenso do discurso golpista no país, pode se tornar muito pior com este pano de fundo catastrófico.
Deixamos de considerar várias variantes aqui. Assim como uma inusitada adoção nacional da quarentena poderia melhorar este prognóstico sombrio, ou uma milagrosa descoberta de uma cura ou uma vacina, mais variantes ainda poderiam piorar este prognótico: o colapso dos sistemas de saúde, a elevação de mortes pelo protocolo da cloroquina, ou o amento nacional das aglomerações devido aos protestos de rua. Todavia, nos atendo ao que já afirmamos inicialmente, a previsão aqui não é catastrófica e nem pessimista. Pelo contrário, é o otimismo possível ao analisarmos de maneira realista no contexto de um país que decidiu experimentar consigo mesmo a sádica aplicação do princípio da imunização coletiva, até o fim da pandemia do Coronavírus. Certamente seremos tomados como um exemplo histórico de como não agir diante de uma catástrofe mundial de saúde pública.
*Maitê Ferreira Nobre é jornalista que aborda o tema da saúde pública advogada, mestranda em Direito pela UFERSA, especialista em direito constitucional pela mesma universidade.
**As opiniões e conclusões contidas neste texto não representam necessariamente a posição do Blog Carol Ribeiro.
*Maitê Ferreira Nobre é jornalista que aborda o tema da saúde pública advogada, mestranda em Direito pela UFERSA, especialista em direito constitucional pela mesma universidade.
**As opiniões e conclusões contidas neste texto não representam necessariamente a posição do Blog Carol Ribeiro.
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