Por Taysa Nunes*
Fui parida pela seca. Abandonada na caatinga. Cresci comendo xique-xique, tomando a água das entranhas da planta, e machucando os pés na macambira. Na estiagem comia preá, caçava calango – a carne dura saciava a dor do estômago que implorava por um prato de feijão com farinha. No inverno bebia do rio, roubava da colheita alheia e tomava banho nos açudes. Lavava a única roupa que cobria meu corpo nas águas que me banhavam - nas pedras, sob o sol, ela secava pra logo depois vesti-la mais uma vez. E, assim, dia após dia, a resistência nunca me deixou morrer. Você se adapta às circunstâncias. Nunca me orgulhei de roubar dos que não tinham muito, mas precisei sobreviver da minha forma. Mas pra tudo nesta vida, o universo te joga o troco. Quem rouba, é punido. Na cidade grande ou te matam ou cortam alguma parte do seu corpo pra servir de exemplo aos outros.
Me deixe contar como foi o meu caso. Em 2040 eu tinha 15 anos. As cidades já possuíam cheiro de poluição e morte. Os bairros mais afastados estavam infestados pelo sarampo e pela sífilis – doenças que, há muito, tinham sido erradicadas. Porém, o homem, como você sabe, deixa margem pro erro. Logo, foi criada uma sistemática de quarentena absoluta pra que o restante da população não contraísse tais pragas. As áreas centrais, desenvolvidas, onde tudo realmente funcionava, viviam sob a fachada da evolução. Prédios imensos, tecnologia de ponta, empregos respeitados e educação de qualidade. Mas pra quem? Não pros pobres, não pra quem sempre esteve à margem da sociedade. Exclusão. Invisibilidade. Ano após ano. E tudo piorou drasticamente. Escolas cívico-militares em todo o país. O método, efetivamente, foi simples: você seguia a regra ou aprendia, na marra, a como segui-la. A construção de cidadãos feitos pra não pensar, mas obedecer.
Cresci no mato, praticamente. Fugi do reformatório aos 09 anos, mas não se engane, sempre prestei muito bem atenção às coisas ao meu redor. Aprendi a ler aos 07. Acessava a internet clandestinamente quando via um celular esquecido em algum escritório do prédio onde vivi. Uma surra de cipó logo em seguida. Por dentro, havia um sorriso de satisfação por me orgulhar em obter notícias do mundo, mesmo que poucas.
Num fim de tarde de domingo, fiquei entretida por um telão em frente a uma padaria imensa, limpinha e brilhante. Nele, era exibida a propaganda do atual presidente falando repetidamente sobre como precisávamos manter a nossa sociedade em ordem pra que nada de ruim acontecesse. “Mas já não tá acontecendo?”, eu me perguntei. Desviei o olhar, um tanto cética pelo discurso, e me deparei com uma cesta de pães na vitrine. Entrei, de esguelha, seduzida pelo cheiro arrebatador. Lambi os beiços e o estômago pediu arrego. Olhei pros lados e, no auge da minha fome, não percebi quando o dono da padaria me viu pegando um dos pães e colocando-o sob a blusa esfarrapada.
- Ei, menina! – ele gritou e eu me assustei. Fiz a coisa sensata naquela hora: corri. Ele veio logo atrás de mim. Me puxou pela blusa, pelo cabelo e pelo braço, mas consegui me safar. Corri pro meio da rua. – Soldados, peguem essa ladra!!! Ela me roubou!!!
Uns cinco deles vieram ao meu alcance e me rodearam. Como não os notei? Eu, provavelmente, já estava sendo observada; eles esperaram apenas a hora perfeita pra porem as mãos em mim. Me surraram com chicotes e pontapés até o pão cair da minha blusa. Eu, sem forças, não tive como me proteger.
- Gente como você tem o que merece, sua vagabunda! – e, daquele modo, me jogaram no fundo de uma van militar, me mandando não sei pra onde.
Me lembro de estar assustada numa daquelas tardes de 2040. Mas só. As próximas memórias se resumem numa longa seringa com uma agulha grossa. Picadas em meus braços. Então, a inconsciência. Não sei em qual momento voltei àquela mesma rua. Mas, quando abri os olhos, os braços já não estavam mais lá. Eu gritei em desespero. Não consegui me levantar só com o apoio das pernas. Me debati no chão. Provavelmente perdi muito sangue naquele dia. As pessoas passavam e tiravam fotos – aposto que eu estaria rapidinho nas redes sociais, exposta. Te veem, mas não te enxergam de verdade. Servi de espetáculo. Ninguém me ajudou. Absolutamente ninguém. Afinal, quem queria ter o mesmo destino? E eu entendi. Sempre vivemos em tempos muito sombrios.
Fiquei por horas no mesmo lugar, agonizando. A inconsciência batia à porta novamente. Quando a noite chegou, me levantaram e me abandonaram num beco qualquer. Cuspiram em mim. Um dos soldados disse “ladra nojenta!” pra logo depois irem embora. Consegui abrir um pouco dos olhos. No alto, bem acima dos prédios, poucas estrelas brilhavam no céu. As luzes fortes da cidade passaram a escondê-las. Pensei: “já passei por muita coisa. Tá na hora de partir. Meu Deus, perdão por todas os pecados que eu cometi, mas me mate”. Talvez Ele tenha mesmo cogitado a possibilidade de me levar, porque, minutos depois, braços me ergueram do chão cuidadosamente. Ouvi, bem no fundo da minha consciência, alguém chorar e dizer: “o que fizeram com você, minha filha?”. Portanto, não pelas mãos de Deus, mas pelas de Dandara, eu renasci.
Ao me lembrar de tudo, a fúria sobe à cabeça. Hoje, com o vento noturno açoitando meu rosto, cavalgo rápido na minha égua Maria. Os meus amigos estão ao lado. Os cavalos correm nas curvas das estradas habilmente, pulando pedregulhos e desviando de galhos. O som dos cascos contra o chão é poderoso. Lágrimas de ódio escorrem pelo meu rosto. Dandara me olha de esguelha vez ou outra.
Liberdade. Se não podemos obtê-la através da justiça, que a tenhamos pela força.
Ninguém deveria passar fome.
Não era só um pão, era?
*Taysa Nunes é jornalista, formada pela Uern. Ama ficção-científica e literatura em geral. Escreve desde criança.
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