Por Fernanda Abreu*
Ser uma constitucionalista não é apenas assumir a condição de especialista no estudo de uma constituição, estando apto a falar, com expertise, sobre as temáticas relacionadas ao Direito Constitucional. Ser uma constitucionalista é, de maneira ampla, defender a constituição e buscar sua efetivação, por mais complexo e – em certa medida – utópico que isto se apresente.
Ser uma constitucionalista feminista, por sua vez, implica estar atenta à desigualdade de gênero havida no Direito Constitucional, com crítica à sua suposta neutralidade e visando “repensar e reconstruir a democracia social, mas com a participação e voz das mulheres no direito e na política”. Um tal constitucionalismo visa também, “a partir do olhar de gênero, questionar os temas do direito constitucional”, um direito que é de crucial fundamentalidade na maioria dos sistemas legais do mundo.
Um constitucionalismo feminista é ciente de que o direito acontece na realidade de forma diferente para as mulheres e busca compreender e ofertar solução às desigualdades de gênero que afetam tal grupo social, buscando compreender também as várias facetas dessa mesma desigualdade. Isso é dever de todas as funções estatais, em geral nominadas Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
O Poder Legislativo tem papel central na conformação e na efetivação dos direitos fundamentais e dos direitos humanos: cabe-lhe gestar mecanismos de concretização constitucional, através da política e do direito. A forma usual de realização dessa tarefa é conhecida por todos: a legislação, a produção de leis.
A par disto, quero ressaltar aqui um mecanismo de impulsionamento legislativo pouco conhecido e que, a meu sentir, se constitui em um bom exemplo – a ser replicado – de constitucionalismo feminista, representando a busca pela efetivação constitucional, sob uma perspectiva de gênero e em prol da luta contra as desigualdades que afligem as mulheres brasileiras. Vale considerá-lo, ainda, no contexto pandêmico.
Refiro-me à assim chamada Procuradoria da Mulher. Criada no Câmara dos Deputados em 2009 e no Senado Federal em 2013, trata-se de uma iniciativa que existe em poucos Estados brasileiros, a exemplo de São Paulo, Curitiba, Alagoas, Amapá e Pará e, segundo os registros institucionais da Câmara dos Deputados brasileira, seria um órgão legislativo criado...
“[...] com o objetivo de zelar pela participação mais efetiva das deputadas nos órgãos e nas atividades da Câmara, e também fiscalizar e acompanhar programas do Governo Federal, receber denúncias de discriminação e violência contra a mulher e cooperar com organismos nacionais e internacionais na promoção dos direitos da mulher”.
No sítio eletrônico da Câmara dos Deputados vê-se como criar uma procuradoria da mulher nos Estados e Municípios, reconhecendo-se que a cena política no Brasil ainda é predominantemente masculina, tornando iniciativas como esta essenciais.
Nos sítios eletrônicos das Procuradorias da Mulher no Congresso Nacional e no Senado Federal brasileiros é possível ver um mapeamento das iniciativas normativas sobre mulheres no Brasil, com registro de ações educativas e de propostas legislativas temáticas. Isso facilita o acesso a estas iniciativas, assim como sua identificação e acompanhamento. É possível também ver as iniciativas do contexto pandêmico.
A página do Senado tem também sistematização desse acompanhamento legislativo a partir dos eixos saúde, violência, política e trabalho, mostrando pesquisas em temas como mulheres na política, agenda legislativa das senadoras brasileiras, tráfico internacional de mulheres, dentre outros.
Já no sítio eletrônico da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Norte (RN) vê-se que a criação de uma Procuradoria da Mulher foi tematizada em 2018, mas não são localizados registros de sua aprovação e instauração. Aponta-se, entretanto, a renovação da “Frente Parlamentar da Mulher”, composta pelas deputadas Cristiane Dantas, Isolda Dantas e Eudiane Macedo.
De fato, buscando-se informações sobre as práticas legislativas produzidas em prol dos direitos das mulheres no período pandêmico e no âmbito da Assembleia Legislativa no RN, destacam-se as seguintes leis, as duas primeiras de iniciativa de Cristiane Dantas e a segunda de iniciativa de Isolda Dantas:
1) A Lei Estadual n° 10.720/2020, relacionada à comunicação aos órgãos de segurança pública pelos condomínios acerca de qualquer ocorrência ou indícios de violência doméstica e familiar contra mulher, criança, adolescente ou idoso;
2) A Lei n° 10.722/2020, que autoriza o Poder Executivo a instituir o projeto "Casa Abrigo" para acolhida de mulheres em situação de violência doméstica, com atendimento regional em Natal;
3) A Lei nº 10.726/2020, que estabelece a Delegacia Virtual para o enfrentamento à violência contra a mulher.
Os projetos são exemplos concretos, mas não únicos e nem imunes a uma visão crítica, do que líderes mulheres podem realizar em prol dos direitos das mulheres.
Certamente, a criação de uma Procuradoria das Mulheres no âmbito da referida Assembleia Legislativa (RN) - com todos os aparatos educacionais, de observatório crítico e de sistematização de saberes e políticas daí decorrentes – permitiria a cada parlamentar visualizar as razões do necessário combate às desigualdades que alcançam fortemente a vida das mulheres, impedindo-as de ter iguais oportunidades de desenvolvimento e vida digna. Permitiria ao parlamento agir de forma fundamentada e adequada à construção de políticas públicas eficazes e interseccionais.
Reconheço, com Biroli & Miguel, que a questão da igualdade entre homens e mulheres na política é muito complexa, sendo quanto a ela relevante problematizar, dentre outas coisas, o seguinte: a insuficiência do acesso a posições formais na estrutura do poder; os impactos da divisão sexual do trabalho na representação política das mulheres; a revisão crítica dos padrões de discurso considerados adequados no âmbito político, predominantemente afeitos à universalidade do discurso masculino.
Entendo que as procuradorias das mulheres são um tipo muito específico de ativismo político, jurídico, feminista e de concretude constitucional da igualdade que possui um grande potencial para gerar impactos relevantes sobre a ocupação dos espaços de poder dentro e fora dos Parlamentos. Merece, portanto, ampliação de sua criação e dos estudos sobre seu funcionamento e impactos da realidade legislativa pátria.
Assim, batalhemos por mais Procuradorias das Mulheres no Brasil e no mundo, em cada recanto legislativo existente, inclusive no Rio Grande do Norte e em Mossoró, locais onde vivo.
*Fernanda Abreu é Advogada (ASBA - Araújo, Soares, Barreto e Abreu Advogados Associados), Presidente da Comissão da Mulher Advogada (OAB Mossoró) e Professora de Direito (FAD-UERN).
**Além das fontes já citadas, este artigo teve como fontes as obras "Interpretação Constitucional Feminista e a Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal" e "Feminismo e política: uma introdução".
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