Brasil deixou de ser signatário da chamada Declaração do Consenso de Genebra, espécie de libelo multilateral contra o aborto e em defesa da família baseada em casais heterossexuais
O Brasil havia aderido ao documento em outubro de 2020 (Foto: Divulgação) |
O governo do presidente Lula (PT) anunciou nesta terça-feira (17) que deixou de ser signatário chamada Declaração do Consenso de Genebra, espécie de libelo multilateral contra o aborto e em defesa da família baseada em casais heterossexuais.
O Itamaraty justificou a decisão afirmando que o texto “contém entendimento limitativo dos direitos sexuais e reprodutivos e do conceito de família e pode comprometer a plena implementação da legislação nacional sobre a matéria”, incluindo os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS).
Carta de Genebra
O Brasil havia aderido ao documento em outubro de 2020, numa cerimônia na qual o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) se fez representar pelos então ministros Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), expoentes da propalada ala ideológica da gestão.
Os Estados Unidos, à época com Donald Trump na Presidência, copatrocinaram a declaração, ratificada por governos ultraconservadores como Egito, Hungria, Indonésia e Uganda. Quando da posse de Joe Biden, porém, já tinham deixado de referendar o texto e representar sua liderança.
Segundo a carta assinada por 31 países, o aborto não deve ser considerado um método de planejamento familiar e que a criança precisa ser protegida mesmo antes do seu nascimento. A carta defende que não haja um direito internacional sobre o aborto e que cada país deve ter a sua própria legislação no tema.
O que pode mudar com o desligamento da declaração?
A BBC News Brasil consultou pessoas envolvidas com o tema - favoráveis e contrárias à assinatura do Consenso de Genebra - para entender quais podem ser os impactos da saída do Brasil.
Para a antropóloga Lia Zanotta Machado, professora da Universidade de Brasília (UnB) e defensora da ampliação do acesso ao aborto no país, o desligamento será positivo para a ampliação dos direitos femininos.
"A saída representa um alívio para que os direitos das mulheres e a interrupção da gravidez dentro do que postulam o Código Penal e o STF (Supremo Tribunal Federal) voltem a ser encaminhados no Brasil sem todas as dificuldades impostas nos últimos anos", diz.
Segundo Zanotta, após se juntar ao grupo, o governo brasileiro passou a aprovar diversas portarias que dificultaram o acesso das mulheres ao aborto mesmo nos casos em que o procedimento é permitido - quando a gravidez é decorrente de estupro, quando há risco à vida da gestante ou quando há um diagnóstico de anencefalia do feto.
Entre elas está a portaria GM/MS nº 2.561, de 23 de setembro de 2020, que estabelecia a necessidade de o médico comunicar o aborto à autoridade policial responsável.
O texto também destacava que era preciso preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro, como fragmentos do embrião ou feto. Ela foi revogada pelo Ministério da Saúde nesta semana.
Outro lado
Já para a advogada Angela Gandra Martins, ex-secretária Nacional da Família do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro, a saída do Brasil do Consenso trará prejuízos para o trabalho na área de direitos humanos e desenvolvimento familiar.
"O Consenso deu origem a uma plataforma de debate e intercâmbio em termos de direitos humanos, de forma positiva e compositiva", afirma a professora da Universidade Mackenzie, que participou dos esforços de coordenação e redação da declaração e afirma que vários marcos positivos foram alcançados pelos países do grupo.
Para ela, o desligamento deve impactar diretamente no funcionamento de uma série de projetos impulsionados pela aliança, principalmente daqueles relacionados à promoção do desenvolvimento familiar e da co-responsabilidade no lar como forma de apoio às mulheres.
Além disso, a professora de Direito acredita que a decisão do novo governo pode levar à "estaca zero na autonomia humana". "Estão planejando acabar com tudo que o movimento pró-vida fez. Não exigir boletim de ocorrência para a realização de um aborto em caso de esturpo é uma incoerência jurídica", diz.
Datafolha
Uma pesquisa do Datafolha divulgada no início de junho mostrou que 39% dos brasileiros entrevistados consideram que a lei deve permanecer como está, enquanto 26% disseram acreditar que o aborto deve ser permitido em mais situações ou em todas as situações.
Por outro lado, 32% disseram concordar com a total restrição da interrupção da gravidez no país. Em dezembro de 2018, a taxa era de 41%.
Em termos globais, a edição de 2021 do estudo Global Views on Abortion, da Ipsos, classificou o Brasil como o quinto país menos favorável à legalização total do aborto em um conjunto de 27 nações analisadas.
Na pesquisa, 31% dos brasileiros disseram ser favoráveis à descriminalização do aborto sempre que for o desejo da mulher — a média nos países pesquisado foi de 46%.
*Com informações da Folhapress e BBC.
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