domingo, 2 de abril de 2023

A decisão do STJ de barrar a perseguição às mulheres que abortam

Advogada reflete sobre decisão do STJ ao reiterar que a equipe médica não pode denunciar pacientes por aborto.

(Foto: Catarinas.info)

Por Eloísa Machado de Almeida*

Do Site CatarinasO óbvio foi reafirmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ): é ilegal a violação de sigilo médico. A obrigação de não dispor sobre as informações do paciente, que recai sobre os profissionais de saúde, está prevista nos códigos profissionais e decorre da proteção constitucional à intimidade e à privacidade. 

Apesar de ser uma obviedade, essa obrigação é constantemente violada quando se trata de direitos sexuais e reprodutivos. São inúmeros os casos nos quais uma mulher, procurando atendimento de saúde, tem sua intimidade violada por profissionais de saúde que ignoram o dever de sigilo médico. 

Se há suspeita de aborto, enfermeiros, técnicos de enfermagem e médicos repassam informações de pacientes para autoridades do sistema de justiça que, por sua vez, dão andamento a investigações e ações penais mesmo diante de evidente ilegalidade das informações.

A atuação dos profissionais de saúde não é menos reprovável do que a dos operadores do sistema de justiça, promotores, delegados, policiais e juízes que constroem a perseguição a mulheres a partir de provas evidentemente ilegais. 

O caso decidido pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça retrata exatamente essa situação: uma mulher procurou atendimento médico e foi denunciada por aborto diante de suspeita de profissionais de saúde. E, apesar de ser conduta ilegal, autoridades policiais, membros do Ministério Público, juízes e desembargadores levaram o caso adiante. 

Segundo informações divulgadas pelo tribunal, “de acordo com o processo, a paciente teria aproximadamente 16 semanas de gravidez quando passou mal e procurou o hospital. Durante o atendimento, o médico suspeitou que o quadro fosse provocado pela ingestão de remédio abortivo e, por isso, decidiu acionar a Polícia Militar. 

Após a instauração do inquérito, o médico ainda teria encaminhado à autoridade policial o prontuário da paciente para comprovação de suas afirmações, além de ter sido arrolado como testemunha. Com base nessas informações, o Ministério Público propôs a ação penal e, após a primeira fase do procedimento do tribunal do júri, a mulher foi pronunciada pelo crime do artigo 124 do CP”. 

A decisão do STJ, além de reafirmar o óbvio direito constitucional de mulheres à privacidade e à intimidade – e do correspondente dever de sigilo imposto aos profissionais de saúde sobre suas informações médicas – tem outros dois pontos muito relevantes. 

O primeiro deles é o reconhecimento contundente da ilegalidade da prova obtida a partir da violação do sigilo médico. Neste ponto, a decisão é um recado sobretudo aos operadores do sistema de justiça: o processo baseado em provas ilegais será invalidado.

É especialmente chocante que membros do Ministério Público, instituição incumbida constitucionalmente da proteção da ordem jurídica, ignorem as violações ao sigilo médico e transformem seus cargos em instrumento de perseguição ilegal a mulheres.

O segundo deles é o recado dado a médicos – e por extensão a todos os profissionais de saúde – que violarem o dever de sigilo. A decisão do STJ determinou ao Ministério Público e ao Conselho Regional de Medicina que investiguem a conduta do médico e que o responsabilizem pela violação dos direitos da paciente. Se a lei não tem sido razão suficiente para que profissionais de saúde preservem o sigilo médico, que uma possível punição ética e criminal o sejam. 

Neste ponto, há um potencial pedagógico na decisão que deveria repercutir em todos os conselhos profissionais de saúde, como uma orientação clara: violar sigilo médico de mulheres que buscam atendimento de saúde por suspeita de aborto é ilegal e pode gerar a devida responsabilização daquele que o viola. 

Há, entretanto, um debate menos óbvio e mais urgente que ressoa no Judiciário sobre a inconstitucionalidade do crime de aborto. A Primeira Turma do STF já julgou um caso concreto determinando que a interrupção voluntária da gestação até a 12ª semana não é crime por se tratar de um direito. O STJ, entretanto, absteve-se de analisar a questão por ainda estar pendente de julgamento, no STF, uma ação ampla sobre a incompatibilidade do crime de aborto com a Constituição de 1988. 

Além da perseguição ilegal a mulheres no momento do atendimento de urgência em saúde, há outros enormes desafios no campo dos direitos reprodutivos das mulheres: os remédios para interrupção da gestação possuem tratamento normativo equivalente ao dado ao crack, os protocolos de atendimento para aborto legal estão desatualizados, os locais de atendimento são insuficientes e médicos se recusam a atender demandas, as organizações que disponibilizam informações sobre métodos de interrupção de gestação chancelados pela Organização Mundial de Saúde são atacadas e passam por assédio judicial. Há um verdadeiro direito de exceção quando se fala em direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. 

Tudo isso seria resolvido com o julgamento que reconhecesse a inconstitucionalidade da criminalização do aborto: tema essencial para conferir, ainda que tardiamente, igual dignidade e cidadania às mulheres. Enquanto isso não acontece, mulheres permanecem tendo que defender o óbvio e torcendo para que os tribunais reconheçam as constantes violações a seus direitos. 

*Eloísa Machado de Almeida é Advogada. Professora da FGV Direito SP e coordenadora do grupo de pesquisa Supremo em Pauta FGV Direito SP. Doutora em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Ciências Sociais (PUCSP). Fundadora do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos – CADHu. Ganhadora do Outstanding International Woman Laywer Award, dado pela International Bar Association (IBA) 2018-2019.

Postar um comentário